quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Lógica Deôntica e Alguns Paradoxos Deônticos

A Lógica Deôntica Standard (LDS) toma as proposições como objeto das modalidades deônticas (obrigatório, proibido e permitido). A aplicação de qualquer uma das modalidades sobre uma proposição gera outra vez uma proposição. Lembramos que proposições são aquele conteúdo de informação que podem ser afirmados, asseridos. As modalidades deônticas são interdefiníveis segundo o quadro aristotélico de oposições já postado nesse blog (exercício: determine como uma modalidade pode ser definida  apartir das outras). A seguir, assumindo a interdefinibilidade das modalidades, os seguintes princípios compõem a  LDS:

(1) Se p é uma proposição, então Op é uma proposição e significa: "é obrigatório que seja o caso que p".

(2) Assumimos a definição de permitido e proibido a partir da negação e da modalidade O.

(3) Todas as tautologias e regras válidas de inferência do cálculo proposicional são tautologias e regras de inferência de LDS (ou seja qualquer fórmula que resulta uma tautologia pelo método dos tableaux pertence a LDS, assim como qualquer regra de inferência que resulta válida pelo método dos tableaux).

(4) Regra de obrigação (RO):
 |- p
 ____
 |-Op

ou seja, se p é lógicamente válido (uma tautologia, por exemplo), então Op é logicamente válido.

(5) Regra da distribuição da obrigação sobre a implicação (O->):

O(p->q)
________
Op->Oq

veja que esta regra de inferência difere da anterior, pois não é pedido que a premissa da regra seja logicamente válida.


(6) Distribuição da obrigação sobre a conjunção (O&):  

O(p&q)          
_______          
Op&Oq        

Op&Oq
________
O(p&q)

nestas regras também não é necessário que a premissa seja logicamente válida.

Os princípios acima constituem a lógica LDS. Várias lógicas distintas tem sido propostas com o objetivo de capturar as relações lógicas de obrigação (e as demais modalidades deônticas) junto com os conectivos lógicos. A razão para isso é que na LDS e nas várias lógicas deônticas encontramos paradoxos. A palavra paradoxo aqui é usada de uma forma bastante ampla. Paradoxos são todas aquelas situações em que o resultado lógico dos princípios expostos mais acima ( e de outros diferentes nas lógicas deônticas distintas) quando confrontados com nossas intuições linguísticas apresentam resultados que são contra-intuitivos. Descrevemos a seguir três desses paradoxos para LDS.

Paradoxo de Rosser

A seguinte fórmula é uma tautologia p->(pvq), pela regra (RO) temos O(p->(pvq)) e pela regra (O->) temos Op->O(pvq). Assim, um exemplo de proposição deôntica logicamente válida com essa estrutura é: se é obrigatório que João envie a carta, então é obrigatório que Joâo envie a carta ou que João queime a carta. Suponhamos que seja obrigatório que João envie a carta (Op), logo por modus ponens inferimos que: é obrigatório que João envie a carta ou que João queime a carta (O(pvq)).
A situação é paradoxal, pois o ato que permite cumprir com a segunda obrigação admite que se queime a carta, embora esse ato não seja adequado para cumprir com a primeira obrigação, a de enviar carta.
Nesse caso pode-se dissolver o paradoxo observando que a verdade da proposição de obrigação no antecedente é CONDIÇÃO SUFICIENTE da verdade da proposição de obrigação que está no sucedente.

Paradoxo de Chisholm

Considere que as seguintes afirmações são todas elas corretas a cerca de um personagem João e de uma dada comunidade: (i) É obrigatório que Pedro não roube a comunidade (O~p); (ii) É obrigatório que se Pedro não rouba a comunidade, então que Pedro não seja castigado pelo crime de roubo da comunidade (O(~p->~q)); (iii) Se Pedro rouba a comunidade, então é obrigatório que Pedro seja castigado pelo crime de roubo da comunidade (p->Oq); (iv) Pedro rouba a comunidade (p). Tomadas em conjunto todas essas afirmações podem ser verdadeiras, são factíveis. Todavia, do ponto de vista da lógica LDS, segue-se uma contradição dessas quatro afirmações e portanto elas não poderiam ser todas verdadeiras: paradoxo. A contradição é obtida do seguinte modo:


(1) O(~p->~q) por (ii)
(2) O~p->O~q de 1 pela regra (O->)
(3) O~p  por (i)
(4) O~q por inferência (modus ponens) sobre (2) e (3)
(5) p->Oq por (iii)
(6) ~p por inferência (modus tolens) de (4) e (5)
(7) p por (iv)
(8) contradição entre (6) e (7).

De todos os passos o único que envolve um princípio exclusivamente deôntico é a regra (O->). Portanto, ela está envolvida na produção da contradição de um modo importante. Todos os demais passos são reconhecidos na lógica clássica como passos corretos. É difícil dizer o que poderia estra errado nessa regra.

Paradoxo do Bom Samartitano

Damos a seguir uma das versões do chamado paradoxo do bom samaritano. Esse parece ser um dos paradoxos mais persistentes e sempre reaparece nas diferentes modificações da lógica deôntica feitas com o objetivo de evitar os demais paradoxos.
Considere as seguintes afirmações: (i) É proibido que alguém seja roubado (O~p); (ii) se o bom samaritano ajuda a uma pessoa que foi roubada, então alguém foi roubado (q->p). As duas são perfeitamente compatíveis, a segunda inclusive é uma verdade de caráter lógico, embora a estrutura p->q nesse caso não represente isso (precisaríamos da lógica de predicados para mostrar que ela é uma verdade lógica). Das duas afirmações segue-se logicamente a seguinte afirmação: (iii) É proibido que o bom samaritano ajude a uma pessoa que tenha sido roubada (O~q). Demonstra-se que (iii) segue de (i) e de (ii) da seguinte forma:

(1) |- q->p (ii) (lembre-se que isso é uma verdade lógica)
(2) |- ~p->~q de (1) por inferência (contraposição)
(3) |- O(~p->~q) de (2) pela regra RO
(4) |- O~p->O~q de (3) pela regra (O->)
(5) O~p de (i)
(6) O~q de (5) e (4) por inferência (modus ponens), isso é exatamente (iii)

Esse paradoxo tem dado espaço para um debate intenso acerca das noções deônticas.

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